Como um choque que se propaga em sucessivas ondas, a crise ocasionada pela pandemia do novo coronavírus revela novas facetas com o passar dos dias. À parte os efeitos bruscos do distanciamento social sobre o transporte de passageiros, as empresas do setor passaram a lidar com múltiplas incertezas. Com isso, muitos contratos precisarão ser revistos ou, até mesmo, descumpridos.
Para orientar os empresários nessa revisão de expectativas, a revista CNT Transporte Atual consultou dois especialistas em reestruturação financeira e resolução de conflitos: os advogados Antonio Carlos Mazzuco e Leonardo Neri, da banca Mazzucco & Mello. Juntos, eles cercaram a questão da “quebra” de contratos por todos os ângulos.
No Brasil, como em outros países herdeiros da tradição romano-germânica do direito, as obrigações seguem um princípio básico, chamado de “pacta sunt servanda”. Isso significa que os pactos devem ser observados, e o descumprimento é a exceção. Para que uma obrigação seja flexibilizada, sem a responsabilização de uma das partes, o nosso ordenamento jurídico reserva poucas hipóteses (veja box).
“Quando a gente fala de descumprimento, criaram-se as doutrinas do caso fortuito e da força maior. Ambas estão no Código Civil brasileiro. Tanto uma quanto outra lidam com a incidência de um fato necessário, cujos efeitos não se podia evitar ou impedir”, esclarece Mazzuco. A pandemia da covid-19 parece se enquadrar nessas características. É preciso ter cautela, no entanto.
O Código Civil prevê a possibilidade de resolução de um contrato, em caso de “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”, se uma das partes ficar evidentemente prejudicada, ou seja, se a prestação se tornar excessivamente onerosa – vide o art. 478, do CCB. “Mas, com relação ao setor transportador, não é que os preços (os insumos necessários) tenham aumentado. O dos combustíveis até caiu. Claro que o lockdown (confinamento) tem impacto na operacionalidade das empresas, mas é uma situação muito curiosa”, pondera o advogado.
Ou seja, não basta alegar a onerosidade excessiva para pedir um reequilíbrio contratual. Para levar causas dessa natureza a juízo, o empresário deverá demonstrar, com muita robustez, as relações de causa e efeito que tornaram a obrigação pesada demais ou inexequível. Terá de produzir provas, por exemplo, da saúde financeira do negócio antes da eclosão da pandemia.
Há outras sutilezas, aponta Leonardo Neri. “Com relação ao setor de transporte, é preciso diferenciar as relações B2C (Business to Consumer), que são de consumo, das relações B2B, entre empreendedores”, alerta. Em geral, o direito trata do consumidor como “hipossuficiente”. “Ele é visto em uma posição vulnerável, porque não detém o conhecimento da cadeia produtiva – detém conhecimento somente do produto e do serviço final”, detalha.
A exceção para essa regra é justamente a força maior. Um bom exemplo disso seria o fechamento de fronteiras para o transporte aéreo. “Isso, simplesmente, faz com que as companhias não tenham como operar. É algo muito difícil de se ver na prática, mas a gente está vivenciando isso”, destaca.
Foi o reconhecimento dessa excepcionalidade que fez o governo incluir as companhias aéreas entre os atores contemplados pela medida provisória n.º 948/2020, que dá tratamento diferenciado a toda a cadeia do turismo. O texto permite não ressarcir os consumidores reclamantes dentro de um período de 12 meses, contados a partir do encerramento do estado de calamidade pública.
Por outro lado, em relações do tipo B2B, não se aplica o Código de Defesa do Consumidor. Como a outra parte é também intermediária (fornecedora de serviço ou produto que não se destina ao consumidor final), voltamos à esfera do Código Civil. Em outras ocasiões, a Justiça já decidiu em favor do reequilíbrio de contrato em razão de acontecimentos extraordinários. Foi o caso, por exemplo, da desvalorização súbita do real frente ao dólar em 1999, que ensejou diversas revisões de contratos firmados na moeda estrangeira.
Seja como for, a inédita situação de pandemia é, sim, passível de ser reconhecida como força maior ou caso fortuito e, daqui para a frente, veremos muitos contratos serem redesenhados sob esse argumento. Mas, atenção: isso não significa que a única via de resolução de conflitos seja a judicial. Há espaço para meios alternativos.
“Eu diria que a primeira providência é a negociação. Ela sempre deve vir antes. A própria lei prevê a mediação como ferramenta na solução de conflitos. Isso vai se tornar cada vez mais comum. Nosso escritório, inclusive, tem trabalhado com plataformas de mediação”, pontua Mazzuco. “Como sugestão, eu diria que o empresário precisa sempre se antecipar ao problema, estabelecer um diálogo e explicar claramente a situação. Falhando a negociação, aí sim a gente vai buscar os remédios judiciais”, conclui.